Eu sou o espelho das minhas árvores,
as minhas árvores são o meu reflexo.
Contra a mercantilização do conhecimento: por uma educação e uma ciência públicas e cidadãs (texto na íntegra in Jornal Publico 6.3.14)
https://www.facebook.com/pages/Manifesto-Para-Um-Mundo-Melhor/146132612150477?fref=ts
É hoje evidente que, sob o
pretexto da crise financeira, o atual governo avança a passos largos
para uma estratégia de fragmentação e mercantilização da educação e da
ciência, num duplo sentido: por um lado, as escolas, os cursos, os/as
professores/as, os/as investigadores/as e o próprio conhecimento, são
reduzidos a produtos transacionáveis e consumíveis, como quaisquer
outros; por outro lado, a estratégia nacional para a educação e a
ciência resume-se à produção e difusão de informação útil às empresas e a
um projeto de Estado ao serviço dos grandes interesses capitalistas, no
âmbito de um projeto mais vasto de transformação da sociedade
portuguesa numa sociedade de mercado desregulado, tentando aplicar uma
visão distorcida das regras de funcionamento da economia de mercado à
sociedade, beneficiando os beneficiados e prejudicando todos os outros.
Tal estratégia tem um
significado e um efeito muito profundos na produção da sociedade de
amanhã, sobretudo atendendo a que diversos autores recentes a têm
designado como sociedade do conhecimento, embora esta atualização
discursiva não possa ser aceite de modo acrítico. Frequentemente
invocada de forma otimista para caracterizar uma época que tem que ver
com o nascimento e expansão das novas tecnologias e de novos negócios no
setor do conhecimento intensivo, com novas práticas de controlo e
avaliação do saber, com a centralidade da racionalidade produzida pela
ciência, a proposta de construção de umasociedade de conhecimento tem-se
tornado, também, numa construção de desinformação e de desconhecimento,
nomeadamente quando envolta no véu da competitividade e crescimento e
da preocupação política de pendor claramente economicista, em que a
utilidade de cada um fica dependente da capacidade de se tornar mais
ajustado, pela mudança na forma e conteúdo das qualificações, às novas
exigências do mercado.
Em educação, vai-se afirmando
um sistema baseado no autoritarismo, nos exames e nas hierarquias
disfuncionais, que segmenta as crianças desde o início do percurso
escolar, lançando-as numa longa e voraz competição, cujo resultado não
será outro senão a exclusão e submissão de uma larga maioria, outrora
excluída de facto e atualmente “excluída do interior” dado permanecer na
escola sem ter sucesso nela. O contacto entre crianças de diferentes
meios sociais é tornado dispensável ou mesmo indesejável, negligenciando
a sua importância para o conhecimento das e o respeito pelas
diferenças. O desenvolvimento de um conhecimento geral, de um
pensamento crítico e humanista ou de práticas emancipatórias de
cidadania, pilares fundamentais da sociedade democrática, ficam
completamente submergidos neste novo “quase-mercado educativo”, que
alimenta igualmente mercados paralelos, como os das explicações e dos
fármacos. As crianças e jovens, com condições muito assimétricas e
diferentes inteligências, gostos e interesses, passam a ser formados
neste novo darwinismo social,
em que cada um luta por si, todos contra todos e que ganhe o mais forte
(que é, em regra, o mais privilegiado, quem pertence a uma classe
dominante). Isto significa um violento ataque ao conceito de educação,
pelo menos como este tem sido concebido e praticado desde o projeto de
construção de uma escola de massas, universal, obrigatória e gratuita,
multi-regulada, com igualdade de acesso e de sucesso.
Ao nível científico, procura-se
impor a mesma lógica, lançando permanentemente os investigadores uns
contra os outros, enriquecendo uns e excluindo outros, em nome de uma
produtividade científica e de uma utilidade para a economia, nem sequer
aferidas por critérios transparentes ou por instrumentos credíveis.
Condenam-se à extinção, desta forma, linhas de investigação e áreas
disciplinares inteiras, esquecendo-se que muitos dos avanços científicos
são, na verdade, públicos, educativos, culturais e civilizacionais, não
tendo uma aplicação direta e de curto prazo para o crescimento
económico, mas constituindo a base indispensável para muitas dessas
aplicações. As ciências sociais são particularmente afetadas, não sendo
reconhecido o seu importante papel na consolidação da cidadania crítica,
das políticas públicas e do desenvolvimento social e económico.
Nesta voragem da fragmentação e
da competição, elimina-se igualmente a própria noção de “comunidade
científica”, sem a qual a ciência não poderá desenvolver-se. Mais grave
ainda, esfuma-se a ideia do conhecimento como “bem público”, sem o qual o
projeto de sociedade democrática e moderna fica irremediavelmente
truncado. Um discurso que tem como uma das suas pedras de toque a ideia
de que a investigação deve ser realizada nas empresas tem como
consequências deixar de lado toda a investigação fundamental nas
ciências sociais e humanas (que não é passível de aí ser realizada) e,
ao mesmo tempo, condena as empresas portuguesas a não beneficiarem da
investigação científica, dado que a esmagadora maioria, pelas suas
características, não tem qualquer capacidade de a desenvolver ou
promover. Na prática, advoga-se o desinvestimento em ciência.
Nada disto, porém, é
inevitável. O projeto de uma educação e de uma ciência que constituam
bens públicos e pilares da democratização e do desenvolvimento ao
serviço da humanização das sociedades, tem mobilizado muitos milhões de
pessoas ao longo dos últimos séculos e, em Portugal, conheceu um enorme
avanço nas últimas décadas, independentemente das flutuações dos ciclos
económicos. Além disso, os próprios avanços culturais e tecnológicos têm
produzido inúmeros novos meios através dos quais tal projeto pode ser
atualizado e aprofundado. A Internet é possivelmente o melhor exemplo,
mas não o único.
É tempo, pois, de nos unirmos e
dizermos que esta não é a educação e a ciência que queremos deixar às
novas gerações. Tal projeto implica, também, um exercício crítico e auto-crítico,
de recusa de fechamento em modelos anacrónicos. É verdade que as nossas
escolas e universidades foram assentes em pesadas hierarquias e numa
tradição de fechamento elitista, herança das estruturas religiosas,
reforçada pelo Estado Novo e não totalmente removida pela revolução
democrática. É fundamental que as escolas, as universidades e os centros
de investigação sejam espaços, eles próprios, democráticos, justos,
rigorosos e humanistas, de forma a que possam ser alavancas da
democracia, do bem-estar, da justiça social e do desenvolvimento humano
sustentável.
Exorta-se, então, a um
movimento coletivo, não apenas de repúdio consciente e fundamentado da
nova ordem mercantilista, mas que contribua para afirmar estes sistemas
como bens públicos e pilares da coesão crítica, democratização e
desenvolvimento. Exorta-se, ainda, a que a promoção da cultura
científica seja uma prioridade nacional, enquanto base de cidadania, de
inclusão não subordinada, de conhecimento rigoroso de nós próprios, dos
outros e do mundo, pilar-chave, enfim, de uma esfera pública alargada.
Exorta-se, finalmente, à consideração das ciências sociais como
possibilidade de entender os múltiplos tempos que fazem o presente; de
combater o preconceito, a discriminação e as diversas formas de
desigualdade, contribuindo para a compreensão e a superação da atual
crise económica, financeira e social.
Carlos Estêvão
(Universidade do Minho), Fernando Diogo (Universidade dos Açores), João
Teixeira Lopes (Universidade do Porto), Maria José Casa-Nova
(Universidade do Minho), Pedro Abrantes (Universidade Aberta), Sofia
Marques da Silva (Universidade do Porto), membros do Manifesto para um
Mundo Melhor (Manifesto Internacional de Cientistas Sociais).
Sem comentários:
Enviar um comentário