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sábado, 17 de agosto de 2013

Ceratonia siliqua, Alfarrobeira. A lenda dos três pães e mais alguns pontos.

A paisagem do barrocal mantinha-se dourada, devido ao mato rasteiro e seco. Mas reavivado pelo verde-escuro de figueiras, medronheiros, alfarrobeiras e sobreiros. Outros laivos de verde-claro pertenciam às ramas novas, disfarçando o calor seco, que se despiam ao sol com todo o fulgor da sua juventude. Também as oliveiras, com as suas folhas prateadas, davam cor à aspereza do calor. As águas moles e verdes-acastanhadas do Arade, que a muito custo ultrapassavam os seus meandros, contrastavam com ar seco que ardia na pele. As margens ficavam isoladas pelo verde das copas baixas, que desenhavam os contornos do rio. As águas só se agitaram, quando tiveram de reflectir o galope veloz do cavalo branco, guiado pelo seu cavaleiro berbere. Os seus olhos iam semicerrados, evitando o ar. A sua jilaba era da cor do castelo de As-shilbs, avermelhada como que desenterrada de um solo barrento e seca ao sol. O cavalo exibia sinais de esforço, mas o mouro pediu-lhe com o pequeno chicote, ainda mais velocidade. Dirigia-se para As-shilbs a fugir das imagens, que lhe franziam testa e lhe cerravam os olhos, as únicas partes que o seu turbante deixava a descoberto.




Aben Mafon, o rei da taifa de As-shilbs, estava no salão do axajaribe a tomar chá de menta. O palácio das varandas, recheado de janelas arqueadas, recortes floridos a decorar o tecto e metade superior das paredes, que deixam entrar a luz em poesia. Ignorava propositadamente o movimento da cidade, dona de vinte mil almas berberes, sempre com negócios apressados de agricultores e forasteiros. Estava imbuído na leitura de poesia de Al-Um'Tamid tentando esquecer as preocupações bélicas, que tanto detestava. Mas era uma condição incontornável, nem a obra Xelbs lhe afastava a razão, pois o avanço dos cristãos não se detinha. Fechou o livro suavemente, mas com a mente perturbada. Olhou um mapa estendido, desde a noite, na mesa redonda de cobre. Era duro reconhecer que devido a disputas, rivalidades e um racismo idiota entre irmãos muçulmanos cansaram-se, desperdiçaram-se, desligaram-se e enfraqueceram-se. Dividiram-se. Vulneráveis agora. A prosperidade é frágil, cresce com a sabedoria e definha com a vaidade e mesquinhez. Falhou. Falharam. Ouvidos surdos aos sábios, um erro aqui, um azar acolá e perdera-se o que se tinha conquistado até ao Tejo. O único conforto de Aben, estava agarrado à altivez dos despiques de poesia, arte e dança entre as diferentes taifas. Ao menos esses troféus de cultura ficarão. Pelo menos conseguiu que as armas se mantivessem embainhadas.
Pairou até à janela, na sua jilaba azul com trabalhos dourados, que o tornava mais alto ainda. Nem a luz clareava as sobrancelhas negras e grossas, ou suavizava o nariz rude e lábios escuros.
 Daquela mesma janela, viu chegar o cavaleiro de jilaba grená e turbante branco. A mando do árabe o cavalo deteve-se, inclinando-se para trás, ferrando os cascos na pedra escorregadia. A ansiedade e nervosismo, transmitia-se do homem para o cavalo como água de um jarro para o copo. Saiu a correr a escadaria em caracol, afastava todos com um encontrão para abrir caminho. Abriu a porta em arco do axajaribe e finalmente tinha à sua frente Aben. O rei conteve as expressões, a antecipação da realidade torna os homens mais calmos. Mas à sua frente Mohamad, na flor da juventude, tinha sangue para conquistar tudo até Coimbra. A derrota, não era uma possibilidade para ele. Porém para o Rei as prioridades eram outras:
- Salaam Aleikum.
- Alaikum as-salaam. Que te traz tão crispado Mohamad?
- Senhor, os cristãos tomaram o Castelo do Alvor.
- Vêm sozinhos?
- Não senhor, vi bandeiras inglesas também. São muitos homens. Entraram com violência, poucos terão conseguido escapar. O que fazemos Senhor?
- Resistiremos. Mas pouparei as vidas dos que me servem e a obra que juntos levantámos. Graças a Alá. Prepare a fuga Mohamad.
- Mas Senhor eu...
- Meu caro Mohamad, não iremos vencer desta vez... Não queira combater a vontade de Alá. Recuaremos. Só resta o nosso califado e o de Aljezur, estamos isolados. Os cristãos trazem o exército de D. Paio Peres Correia da Ordem de Santiago a mando de D. Afonso III, que vem desde o Uádi Ana  a conquistar todos os califados. Agora dizes-me, que a ele se juntaram cavaleiros ingleses. As forças estão demasiado desequilibradas. Conservemos a paz.
- Vamos fugir como cobardes Senhor?! Temos a protecção do Castelo, as nossas armas!
- Não, Mohamad! Não! Teremos de combater estas gentes, para encontrar uma brecha por onde possamos regressar a África. Estaremos unidos na protecção dos nossos. Meu caro Mohamad, quando me cumprimentas desejas que a paz esteja sobre mim. Eu devolvi-te o desejo de paz, literalmente. Não deixes que o significado das mais importantes palavras, se dilua na ecolália dos nossos dias. Nos próximos dias passaremos das palavras aos actos. Faremos a Paz... Faz o que te digo. Leva os prisioneiros para o barco, deixa-o no primeiro meandro a sul de As-Shilbs como que abandonado. Quando os cristãos estiverem às nossas portas, deixemo-los concentrados na guerra de muralha, para os caminhos se abrirem para o Arade através da Porta da Traição.
- Mas senhor, se me permite. Se combatermos...
- MOHAMAD! - o rei perdeu a paciência, mas logo recuperou o tom calmo. - Recordo-te o ano de 1189, em que o Rei Sancho I cercou a cidade em pleno Verão, tal como agora. Utilizou toda a raiva e ódio. O inferno esteve aqui, com todas as suas armas. Para quê?! A barbárie, não irá ter lugar aqui outra vez. Os danos serão os menores possíveis, graças a Alá.
O jovem embutiu-se, surpreendido com o tom áspero do rei Aben. Fez uma vénia e ausentou-se nunca virando costas.
Aben convocou os seus conselheiros e dirigentes militares. Nesta reunião foi bem aceite e compreendido por todos. Uma primeira resistência para preparar a fuga, ainda assim arriscada, através da porta da traição.
Após o plano estar traçado, Aben procurou as suas três filhas. Johara, Nur e Adeela. Johara era a mais velha e mais bonita, vestia normalmente o lilás. Acompanhava normalmente o seu pai, em passeios e nas leituras de poesia. Nur era uma alegre jovem, sempre vestida de branco e muito dedicada à botânica. Os jardins do palácio, tinham o seu toque e o seu perfume. Adeela era a mais nova, mas também a mais enérgica e decidida. Estava normalmente justiça e tinha uma profunda preocupação social e com o bem-estar dos cidadãos de Shilbs. Para o Rei Aben, era este o tesouro a defender. Encontrou-as uma a uma, pediu que se apresentassem no axajaribe. Com curtas palavras, mas sempre com a doçura de uma paternidade plena. O seu corpo falou muito mais às princesas. Perceberam os movimentos melancólicos de seu pai, uma melodia de movimentos de despedida. Sem atrasos nem desculpas, obedeceram ao Rei, ao seu pai, ao seu amigo e apresentaram-se imediatamente nos aposentos palacianos:
- Os cristãos aproximam-se. Estamos cercados, neste momento. As-Shilbs irá cair em breve, para o lado dos cruzados. Tentarei proteger a cidade e todos os que nela habitam. Daqui a duas noites, teremos lua cheia. Estarão as três, perto da cisterna debaixo da grande "árvore que nunca morre". Também eu estarei lá, para vos dar as últimas instruções. Que Alá nos proteja.
No castelo do Alvor, o tumulto já tinha passado. Um conjunto de prisioneiros berbéres, estavam sentados em círculo e acorrentados. Mantinham-se ao sol, apesar de feridos. O movimento dos soldados em folga, ignorava estes mouros. Dom Paio Peres Correia, cavaleiro da Ordem de Santiago, sabia que o Castelo do Alvor era apenas uma premonição. No entanto esta captura, foi fácil. Demasiado fácil. Não lhe foi necessário entrar à força, pela porta em cotovelo, a gritar e a arrancar cabeças. Apesar da conquista, não lhe fora permitida a exibição guerreira. Assim nem espanto, nem surpresa tinha causado ao seu ajudante de ordens Artur Fino. E realmente Artur Fino, que de Fino tinha pouco, pois era bem largo e constituído por uma exemplar camada lipídica em todo o seu perímetro, não se tinha inspirado desta vez. Normalmente as palavras das enormes conquistas de Paio Peres Correia, saíam da boca deste pobre. Mas como o vento, tinha e tem a capacidade de insuflar as palavras até aos ouvidos alheios. A Nobreza e o Clero, já imaginavam o baixo Dom Paio Peres Correia, um alto e esguio homem, de barba feita, de músculos exuberantes, com elevada destreza no manejo da espada que derrubava portas e eliminava num só golpe cinco mouros e mais um cavalo. Dizia-se que os Bárbaros, já tremiam só de ouvir o nome do cavaleiro que colecionava conquistas desde Beja, onde nasceu Al-Mutamid, até Ossónoba.
No entanto Artur Fino, apresentou-se ao seu senhor congratulando-o por tão grande vitória. Dom Paio Peres Correia, retirou e mantou um carrapato nascido e criado nas suas barbas, e mandou calar o gordo:
-Esteja calado! Prepare-me a armadura que amanhã rumaremos a Shilbs!
- Sim senhor! Irá derrubar aquela porta com um pontapé, liquidar seis mouros com o cotovelo e esmagar Aben num duelo em que vossa excelência perde a espada por um golpe traiçoeiro do Mouro, mas levanta-se num ápice, envolto em seu próprio corpo, salta mais alto que o Rei Mouro, caindo-lhe em cima e esmagando-o!
- Caiu-lhe em cima esmagando-o? Toma-me por uma besta?
- Não.... não ..... não.... vossa alteza... não.... esmaga, sufoca-o apertando-lhe o gasganete.
- hmmmmm sim.... o gasganete... apertando-lhe o gasganete parece-me bem.
- Sim.... sim... sim... senhor. Grande vitória! Até o Papa ficará com o queixo no chão, quando souber de tal feito em nome de Deus!
- É Artur. Tu compreendes a minha grandeza! - e esmaga outro carrapato entre o indicador e o polegar, este oriundo da zona das partes baixas que chegou por engano à superfície, por entre as articulações da armadura leve. e continuou - Dá ordem para reunir as tropas! Amanhã rumaremos a Shilbs!
E assim o pulguento exército, com militares nórdicos mas não mais asseados, seguiu na manhã seguinte para As-Shilbs. Demorariam dias a chegar, seguindo o Arade acima.
Na segunda noite, de lua cheia, as três irmãs lá se encontravam debaixo da Alfarrobeira, Johara, Nur e Adeela. O rei Aben foi o último a chegar:
-Minhas filhas, temo pela vossa vida. Os próximos dias, serão de violência e não tenho a certeza que vos possa proteger.
Adeela de pronto tentou demover o seu pai:
- Meu Rei, meu pai, nós estamos prontas.
Mas não encontrou no seu pai qualquer reacção. Nem sequer teve a certeza de que foi ouvida, mas não tentou insistir.
- Minhas filhas. Eu irei encantar-vos e permanecerão sem serem vistas, na cisterna que mata a sede a esta cidade.
- Eu prefiro acompanhar-te. - ripostou Johara.
- Não, Johara. Esta é a minha decisão. Quando for seguro alguém virá buscar-vos. Ajoelhem-se.
E assim fizeram as bonitas jovens. De seguida com o braço estendido, segurando um talego. Iniciou um canto, uns gestos, umas palavras que não se distinguiam ou uns sons que pareciam palavras. Á medida que o talego se enchia, as jovens iam desvanecendo como a cacimba em noite de verão. O rito cessou, com o Rei de joelhos, em lágrimas. Com o saco antes vazio, agora com três pães encostado ao peito.
Dom Paio Peres Correia, os cruzados ingleses, Artur Fino, soldadescos, cavalos, catapultas, pulgas e carrapatos chegaram às portas de As- Shilbs. E como outrora fez Sancho I, Dom Paio repetiu o cerco à cidade. Debaixo do Sol mais baixo de Setembro, Dom Paio acompanhado do seu ajudante de ordens, encarou pela única e ultima vez o Rei Aben Mafon a pedir a rendição da cidade. Que foi recusada pelo Árabe. Para regozijo de Dom Paio, agora sim se tornaria uma lenda!
Alá deve ter acertado uns pontos com Deus, pois tudo saiu relativamente bem dividido. O exército de do Rei Aben, conseguiu acender a batalha para junto da porta principal. O que facilitou a fuga do Rei e seus seguidores mais próximos. No entanto, Dom Paio deixou os ingleses fazerem má figura junto à muralha, tendo sido o batalhão britânico repelido pelas defesas Mouras. Contudo enfraqueceram os berberes, que já não conseguiram parar a entrada triunfal de Paio Peres Correia, no alto do seu cavalo, aproveitando a abertura da porta principal, entrou a debulhar mouros e mouriscos, que voaram cada um para seu lado. Com os aplausos excêntricos, do seu ajudante de armas na retaguarda. Uma vitória tremenda e com estilo! Pena que depois de se aposentarem, não fizeram grande utilização da zona de banhos do Palácio.
A fuga do Rei Aben fora um sucesso, mas alguns homens ficaram pelo caminho. Pois foram avistados por um grupo de arqueiros, que disferiram uma chuva de flechas e lanças sobre os fugitivos. No entanto a descida do Arade, decorreu sem incidentes e já velejavam para Sul em direcção a Ceuta. Um choro cruciante, vindo do porão, passou a embalar a embarcação quase substituindo o vento. Era Alberto um homem conhecido em As-Shilbs, acusado de espionagem. Era baixo, franzino e nunca teve cabelo. No entanto, tinha esposado uma moura, com quem teve duas filhas e que foram deixadas para trás.
O Rei Aben, mandou abrir o porão. Mandou subir Alberto. E disse-lhe:
- Porque choras dessa forma, meu pobre homem?
- Senhor, deixei a minha mulher e as minhas filhas em As-Shilbs. Sinto a sua falta. Fiquei como um deserto e nele irei morrer assim que pisar Ceuta.
- Isso se te libertar...
Mohamad, que também embarcou, quis intervir:
- Mas Vossa Alteza, esse homem traiu-nos.
- Traiu Mohamad? Pois foi. Fui eu que lhe decretei a pena. Não terei sido Mohamad?
- Desculpe Senhor. - e baixou a cabeça, a crista, a mania.
O Rei voltou-se novamente para Alberto:
- Queres ver de novo a tua mulher e tuas filhas?
- Sim, senhor! É o que mais quero.
Ordenou o Rei, que Alberto fosse lavado, tivesse uma refeição decente e se encaminhasse aos seus aposentos. Rapidamente. Assim se fez. Em poucos nós, Alberto estava lá. O Rei Aben Mafon estava vestido com uma jilaba grená, um turbante dourado a condizer com a mobília e decoração da sua sala. Os seus cabelos negros caiam, mesmo assim dramaticamente sobre os seus ombros, concedendo-lhe uma maior estatura e altivez. Alberto teve medo, talvez o rei o fosse matar, por pensar que ele próprio de alguma forma tivesse oferecido informações a Dom Paio Peres Correia. A seguir à esperança o fim. Alberto aceitaria. Mas não foi chamado à sua morte. Não desta vez:
- Alberto, vais-me agora ouvir com toda a atenção. Queres voltar a ver a tua família?
- Sim, Senhor. Muito. - e começou a balbuciar.
- Alberto, calma. Quererás ser rico?
- Oh Senhor... de momento só quero as minhas filhas.
- Mas com a tua família. Desejas ser rico?
- Pois Senhor, sim.
- Então não duvides do que te ordeno. Vou entregar-te este saco com três pães. Não o abandonarás. Não o comerás. Ñão os vais oferecer a ninguém. Deves guardá-los como à tua família. Chegando a Ceuta, dormirás no Porto. Um Pavão se irá aproximar de ti, não o afugentes. Alimenta-o e toca-o. Quando o tocares irás adormecer e acordar em As-Shilbs. Regressa à tua casa, goza a tua família, protege os pães. Na próxima noite de lua cheia, apressa-te até à alfarrobeira junto à cisterna do castelo. Chama o nome das minhas filhas Johara, Nur e Adeela. Entre cada nome, atira um pão para a cisterna. De lá sairá a voar um melro-metálico-de-cauda-comprida, será uma das minhas filhas a vir ao meu encontro. Se conseguires este feito, serás um homem rico e feliz. Caso contrário a má sorte e a pobreza irão acompanhar-te até ao fim da vida.
- Assim o farei meu Senhor.
A viagem decorreu sem sobressaltos. A tripulação chegou, o rei foi recebido e encaminhado para o palácio real. Os restantes tripulantes difundiram-se nas cores, movimentos e cheiros próprios de um porto concorrido como o de Ceuta. Só Alberto, com a saca de pão às costas, se deteve olhando em volta procurando um esconderijo. Só não queria ser visto, para evitar problemas. A Liberdade veio ter com ele assim, quando estava mais perto da sede no deserto. Queria aproveitar.
Tal como Aben Mafon lhe disse, surgiu de não se sabe de onde,  um pavão lindo com o azul metálico que se conhece exaltado pelo grande luar. Deu-lhe um pouco de milho, mais uns farrapos de alfarroba, desenhando um rastilho até ao seu corpo. Tocou a ave, sentiu fazer uma festa sobre seda. Os dedos entorpeceram, o braço encortiçou-se até ao cotovelo, o braço inchou e tornou-se leve. Depois o tronco desmaiou, para a frente e só parou nos joelhos. As pernas flutuaram e os olhos encerraram-se. Os olhos do Rei Aben, a humidade do porão e a face desdentada de um amigo de cela. Um reflexo na água da sua esposa, as suas filhas penduradas de cabeça para baixo num ramo forte de alfarrobeira. Um aroma intenso a alfarroba, a pele quente do sol, sentiu a mão esquerda mergulhada na água. Acordou junto à margem do Arade, justamente de onde partiu o barco. O talego com os três pães, estava sobre o seu peito. Experimentou alguns movimentos, para ter a certeza de que era ele no mesmo mundo. A força da gravidade era a mesma, assim como o seu corpo cujas articulações já davam sinais de alguma idade e trabalho duro. Aquele cheiro a alfarroba, aquela sombra. Sentou-se ainda com as pernas esticadas, ficou sobre os punhos na terra molhada. Lá à frente as muralhas de Silves. A cidade permanecia movimentada, talvez Dom Paio Peres Correia tenha poupado a futura capital do Reino dos Algarves rendido à sua beleza. Levantou-se, a pé dirigiu-se a sua casa fora da muralha. Abriu a porta, a sua mulher de avental branco à cintura deixou cair um prato de barro:
- Alberto! Alberto! - Precipitando-se no abraço de saudade e angústia.
- Regressei mulher! Regressei livre!
E choraram os dois abraçados. Momentos depois juntaram-se as suas duas filhas, num amplexo a quatro, carregado com o peso da ausência. Uma refeição mais generosa, do que as de dias quotidianas, invadiu a mesa. Antes disso, Alberto subiu ao sótão escuro e cheio de pó. A luz que entrava, aproveitava defeitos nas telhas. O pó dançava, nesses raios de luz escassos. Uma antiga arca, foi o local eleito para deixar o Talego. Mas o saco, não passou despercebido à sua mulher. Entre emoções e carícias, uma esposa faz automaticamente uma avaliação selectiva do antes e do depois. Estava mais magro, pudera com aqueles meses na prisão. Também se apresentava mais preocupado e silencioso. Trazia um saco, apenas um saco e não disse o que era... ainda assim esperava-o em pior estado.
Mas o saco não lhe saiu da cabeça. Durante a refeição perguntou:
- Oh homem, o que trazias naquele saco?
- Nada de especial. Esqueçam-no...
E assim deixou a semente da curiosidade. Uma Dona de casa, não ignora o que tem em casa. Material ou espiritual, nada passa ao lado da gestão de uma mulher prendada. Quando o seu marido se retirou, para finalmente descansar após tantos meses de injustiça e desconforto, a mulher subiu ao sótão, procurou o saco debaixo de uma cadeira já partida, debaixo de uns lençóis velhos e cheios de pó, restando apenas a arca. Abriu-a, apanhou o saco. Pão? Quem traria apenas pão, depois de tantos meses de ausência. O que estaria dentro do pão? Com um canivete que sempre a acompanhava, cortou um dos pães. Logo ouviu um grito, seguido de um gemido. Largou o pão, deixando-o cair para dentro da arca. Devolveu-o ao saco e desceu escadaria abaixo assustada, mas rápido controlo o nervosismo que o seu corpo espelhava.
Noite de lua cheia. Alberto quis cumprir, o acordado com o Rei que já não era o seu. Colocou o saco às costas e lá foi muralha adentro. Passando a porta, virou à esquerda em direcção da cisterna. Logo avistou a grande Alfarrobeira. Sentou-se junto à abertura e fez o que Aben lhe tinha ordenado.
Retirou um pão do saco e atirou-a para o interior da cisterna, gritando: Johara! Pouco depois ouviu o esvoaçar de um passáro. Espreitou inclinando o tronco para tentar ver alguma coisa. Depois de um momento de silêncio, um melro metalizado numa mistura de azul esverdeado, rasou-lhe os olhos num voo veloz desapareceu em direcção à Lua. Seguidamente lançou outro pão e gritou: Nur! De seguida outro melro voo da cisterna em direcção a sul. Já com um sorriso aberto, lançou o terceiro pão e gritou: Adeela! Mas nada aconteceu. Voltou a gritar: Adeela! Adeela! De súbito ouviu uma jovem a chorar e um melro sem a asa direita que assim não conseguia voltar para junto do Rei Aben Mafon.
Daí em diante tudo o que Alberto tocava adoecia, partia, morria, secava. Não havia cultura que crescesse, caça que não fugisse, animais que não adoecessem. Assim viveu almadiçoado, devido à curiosidade alheia.
Há quem diga que Adeela, ainda chora nas noites de lua cheia debaixo daquela Alfarrobeira, esperando alguém que a leve para o seu lugar.


































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