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quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Jacarandá mimosifolia D. Don - sem Corpo


Nós temos um corpo ou somos um corpo?

(Merleaux-Ponty)

retirado de www.perthseed.com


E de repente a sua mãe morreu. A criança de seis anos sentiu-se ainda mais perdida e desorganizada. Afastava o frio, a falta, o vazio, extravasando os limites, irrompendo por qualquer sala sem reservas, explorando cada objecto de forma obsessiva e despegada, abandonando-o à mínima mudança na refracção da luz artificial. Irrequieto, mal comportado, ainda não havia Hiperactividade, nem dislexia, era simplesmente rebelde e insuportável. Talvez em busca de si mesmo, pois a sua mãe já não o poderia ajudar na construção de “Si”.

Lisboa era uma cidade tão grande, como o seu desamparo e agigantou-se quando chegou o dia em que o seu pai partiu sem avisar. As margens do Tejo alargaram-se, uma criança sem as margens de conforto, sem os braços que o levam a “si” e depois aos outros.

Os seus avós e o seu irmão mais velho eram o seu cantinho. Um lar morno que nunca chegava a aquecer.

A pequena casa, lá para o lados do Lumiar, mal cuidada por a sua avó e só lembrada pelo avô ao anoitecer, era a base das aventuras dos dois pequenos meninos.

E não foi a Escola que os viu crescer, o que aconteceu de forma muito rápida. No fundo sei agora que nunca cresceram “tudo”, não em todas as áreas. Dizemos que os jovem crescem muito rápido, quando mais cedo do que o previsto, descobrem que o Mundo não é perfeito. Isso não é crescer. Isso é visitar o mal real e violento, numa altura em que deviam erguer-se Castelos de Lego e contos de Fada que preservam a criança, à medida que o “Si” se vai transformando em adulto.

Aos 13 anos já tinha namorada, já fumava e já consumia bebidas alcoólicas. Sem barreiras, nem limites os irmãos ditavam o dia-a-dia na “Rua”. O escuro da noite já não era misterioso e como qualquer outra coisa, não metia medo. Visitavam-se já mulheres adultas, negociava-se tabaco e droga com homens adultos. Uma introdução à economia com certificado do Mercado Negro.



Assim “Gaivas”, que foi o nome pelo qual exigiu ser tratado, era uma criança feita homem com o negócio e com os seus vícios. Sem Amor… continuando julgo eu na incessante busca de identidade, relacionava-se sexualmente com várias mulheres.

A meio dos treze anos, apanhou uma constipação que rapidamente evoluiu para uma pneumonia. Com a detecção desta problemática foi internado. Após visitas médicas, análises e exames, verificaram que o pequeno “Gaivas” era Seropositivo. Aos 13 anos! Após me ter relatado tal episódio rebateu de imediato, com um sorriso de quem quer impressionar o próximo, “Pensas que isso me meteu medo? Nãããão! Continuei a minha vida.”. Pensei que o problema não é o utente me querer enganar, receei é que o utente não aceite os seus próprios problemas. Às vezes é bom reconhecermos que estamos à mercê das contingências da vida e da forma como ela marca o nosso desenvolvimento.

Fiquei na dúvida. Não sei o que poderá ter sentido. Nesse mesmo momento eu era uma criança da mesma idade e só pensava em Desporto, Escola (pouco é certo, enfim o quanto baste), Jogos de Computador, em amigos e amigas, sabendo sempre que encontraria ao final do dia o meu Porto de Abrigo, seguro, quente e intacto disposto a receber-me e a ouvir-me. A minha família, foi sempre o meu agente de suporte, o filtro das minhas aventuras e desventuras. Como seria “Eu” sem tudo isso pensei? Sem esse factor protector… como seria? Não seria com toda a certeza o mesmo.

Nesta mesma altura… estaria eu no recreio da Escola ou num jogo de Futebol e o pequeno João Gaivas, já tinha feito tudo e estava perante o desabar do Mundo em cima dos seus pequenos e estreitos ombros. Mundos que eu não conhecia, limites que nem sequer pensava em pisar, eram o dia-a-dia destes irmãos.

Mesmo após este diagnóstico, a vida continuou, apenas com mais umas substâncias a mais. Uns comprimidos chamados Retro-Virais. Uma primeira rotina, pensei! Algo para fazer a horas certas, todos os dias e sem falhar.

Entre álcool e miúdas, surgiram novas pessoas, novos amigos. Com eles ou através deles, aos 16 anos, chegou ao consumo de Heroína. A cada dose uma viagem ao bem-estar, à tranquilidade, à paz, ao esquecimento de tudo o que não fazia sentido, ao último reduto de “Si” que aparentemente não conseguia vivenciar sozinho.

O primeiro “chuto” foi num prédio devoluto, aparentemente uma “República”, com colchões e velhos sofás como mobília. Um dos seus parceiros subiu-lhe a manga do braço esquerdo, retirou o cinto das calças e amarrou-o sobre o perímetro do seu antebraço dividindo o bicípite em dois. “Relaxa, tranquilo que vais fazer uma viagem...” dizia não disfarçando o sorriso e com total confiança e certeza do seu procedimento. Sentado sobre o colchão, João Gaivas estava interessado em todo o ritual. Observava e fotografava cada um dos movimentos do parceiro, que estava de cócoras, entre João e uma pequena mesa de centro de sala, em Carvalho, riscada e sem verniz. Os vasos sanguíneos regurgitaram, após analisar e escolher a veia a “picar” os movimentos do rapaz tornaram-se mais lentos, deixando o dedo indicador na veia previamente seleccionada, voltando a cabeça para a mesa e rodando ligeiramente o seu corpo, sem perder o equilíbrio, seguro e firme. Afastou o limão, pegou na seringa, extraiu o “caldo” da carica, pressionou o instrumento eliminando o ar nela contido e girou em sentido contrário para o braço de João Gaivas. Lembra-se de ter sentido uma picada, sentiu um grande bem-estar, os seus olhos quiseram fechar, a sua respiração abrandou, os trapézios largaram os ombros que mergulharam em direcção ao chão, as mãos abriram, a cabeça passou a pesar chumbo mas os músculos estabilizadores da cervical seguraram-na apenas com a força necessária, o tronco flectiu-se e o centro de gravidade deslocou-se para trás. E caiu para trás no colchão abandonando o seu corpo, o seu Mundo, o seu sofrimento.

De consumos esporádicos a consumos permanentes foi um caminho rápido e relativamente curto. A tolerância do organismo aumento, os períodos de abstinência eram cada vez menos tolerados e a Droga passou a ser a razão de cada dia.

Gaivas, admite ter trocado a “Droga pela dignidade”. Pequenos trabalhos, biscates, arrumador de carros, “gatuno, sim porque também roubei, sabia que estava mal, mas tinha de ser. Ao menos admito.” Ou qualquer outra coisa que fosse possível fazer para obter dinheiro e comprar a sua dose diária, tornava-se uma especialidade. Curioso notar que… há consciencialização da perda de dignidade. Contudo a dignidade já não é mais importante, importante é a Droga. O Corpo… também terá sido esquecido aos poucos… tornando-se apenas na via, no objecto pelo qual o “Cavalo” pode fazer o seu trabalho. Apesar de agora a consciência sobre aquilo que é digno e não é digno mantém-se, isto é, o juízo moral, o mesmo não se passa com a imagem corporal, com o auto-conceito. O Corpo continua esquecido, desinvestido, mal-tratado. O auto-conceito está desvirtuado, assim como a auto-estima, apesar de uma escamoteada afirmação de “Poder” e confiança sobre a reabilitação e reintegração. É também aqui que vou ter de trabalhar, tentar demonstrar ao utente, sem o perder, sem desrespeitá-lo, demonstrar onde ele está, de como ele está.

Foi castigado por Roubo, cumprindo prisão efectiva. Nada ganhou, nada perdeu, apenas lhe foi apresentada a Metadona.

Os seus avós entretanto faleceram, o seu irmão consumiu mas conseguiu ficar “limpo”. A renda não era suportada, João Gaivas dormiu seis meses na rua e o seu irmão conseguiu um trabalho mal pago e um quarto.

Aos dezanove anos, passou a consumir cocaína e heroína, ao mesmo tempo que o seu irmão se juntou com uma rapariga e João Gaivas foi acolhido lá em casa, contra a vontade da nova companheira do seu irmão.

Mais tarde, aos 21 anos, recorreu à Unidade de Desabituação, em Lisboa. Fez internamento e continuou no Programa de Desabituação com Metadona.

Sem conseguir perceber como e em que circunstâncias, aos 23 anos João Gaivas, sofreu um acidente. Refere ter sido atropelado por um autocarro, ter batido com a cabeça e ter ido para o Hospital. Não sabe bem onde, nem como. Do acidente não resultou qualquer lesão, fez radiografias e TAC´s, que não sugeriram qualquer tipo de lesão ortopédica ou neurológica. Mas desde esse dia, que sentia uma dor no Joelho direito de tal forma que não se conseguia colocar em pé. Passou a andar em cadeira de rodas, “só saía de casa para ir buscar a metadona e regressava ao meu quarto”. Penso que terá desenvolvido uma Depressão Major, eventualmente. Este sedentarismo mantido e prolongado, a par com o consumo de Metadona, álcool, retro-virais e uma má alimentação descondicionaram o João Gaivas, que se tornou obeso e cada vez mais dependente. O João nunca me trouxe os exames que tinha realizado no Hospital, embora me tivesse prometido de sessão para sessão que os traria. Achei curioso ter sido forçar a não acreditar no João, nada desta História batia certo, não havia qualquer prova, qualquer documento. Mas tendo perante mim, a solução é começar a partir de onde a pessoa está…

Contudo continuou a ser acompanhado pela U.D., sendo que o João não consome há oito anos, desde os seus vinte e dois. Conseguiu perder peso e recuperar a função de marcha com canadianas.

Não se pense que esta história foi-nos ditada por João Gaivas, com este sentido cronológico e clareza de conteúdos. João Gaivas tem uma expressão oral atabalhoada, direi que “redonda” como as pessoas do norte e ao mesmo tempo anasalada como a pronúncia do Bairro da Mouraria. As palavras são ditas a uma velocidade de tal forma vertiginosa, que julgo que ouvi duas palavras numa só. Foi-me dito que João Gaivas era “verborreico”. O discurso pode não ter pragmática, isto é, é descontextualizado, a articulação das palavras é difícil e a fluência é demasiado rápida. Pensei eu… “Claro… fala tal como a sua vida é! Sem pontuação, sem regras, sem outros. Deita cá para fora tudo o que puder, só na esperança de se sentir.”

Ouvir o João, ouvi-lo de forma activa, é cansativo, esgotante e confuso. Aprendi a interromper o João, quando ele ficava sem ar nos pulmões ou quando tinha de engolir a saliva por vezes espreitava nos cantos da sua boca. Foi difícil de contextualizar o discurso do João e fazê-lo compreender que para se comunicar também se tem de ouvir a outra parte. De resto, João Gaivas não é o único verborreico no Centro, existem outras pessoas que conservam estes desajustes de relação pessoal e social.
No dia em que realizei esta primeira entrevista, adivinho que João Gaivas se levantou às seis da manhã. Já chovia a esta hora, o Inverno tem sido rigoroso e a Primavera ameaça ser uma representação mais terna, elevando ligeiramente a temperatura, diminuindo o vento, mas oferecendo a chuva à Terra.

Mas a chuva não foi motivo, para João mudar a sua roupa. Continuou com a camisa interior branca com que dormiu, espreguiçou-se e sentou-se na cama. Vestiu por cima uma t-shirt azul que estava embrulhada aos pés da cama. Os seus pés tocaram e puxaram as calças de fato de treino azuis com duas riscas brancas longitudinais, que passaram a noite no tapete. Puxou as calças para cima, lentamente, despreocupadamente.

Não precisa de folhear a agenda. Sabe que o seu dia começa com 125 mg de Metadona e depois acaba com umas cervejas no café, nada mais do que isso, só isso. Comeu uma sandes e tomou um café, numa pastelaria modesta ao virar a esquina. Dirigiu-se para a paragem de autocarros, para tomar o caminho do "Hospital”. Iludiu mais uma vez o motorista do autocarro e viajou sem passe.

Às 8h45m, chegou à Praça de Alvalade, desceu pela porta de trás do autocarro. Eu chegava no Metro e segui a sua marcha com canadianas a quatro pontos, apesar de nunca ter visto o João Gaivas, pela descrição que me tinham feito as Terapeutas tive a certeza de que era ele.

Talvez na primeira vez neste dia, levantou os seus olhos do chão que são ajudados por uns óculos de lentes grossas, penso que a procurar companheiros ou traficantes, que para mim passam despercebidos mas lá que eles estão lá, estão. Trás uma face sem expressão, com os olhos ligeiramente arregalados, curiosos. O seu tronco inclina-se à frente em ligeira flexão, promovendo uma lordose lombar acentuada. Os extensores do ráquis e o quadrado lombar, compensam os preguiçosos flexores da anca, os joelhos mantêm uma flexão aproximadamente de 20 graus de flexão e não executa a dorsiflexão. Os pés arrastam-se ligeiramente pelo chão, ignorando as poças. As calças de algodão, estavam completamente ensopadas até aos 2/3 da perna.

A sua pele é morena entre o castanho e o amarelo, uma cor que não conseguimos explicar nem definir bem, mas que no nosso ideal indica que aquela pessoa é toxicodependente. Um preconceito… é verdade… mas é o corpo a falar.

É nesta marcha desenrascada, rápida, que não parece necessitar de tanto apoio nas canadianas, que João Gaivas entra no Portão Principal. Virou à direita e logo depois à esquerda, penetrando no Parque, com altas e antigas árvores, com as copas dos ancestrais Jacarandás amarelados de frio. com Jardins que conservam todo o peso das vidas que por ali passaram e passam. Cumprimenta uma ou outra pessoa, acenando com a canadiana, que substitui a sua mão.

À sua direita está um dos blocos de internamento em psiquiatria. Um pouco mais à frente, terminando a alta parede rosa, inicia-se uma rede que cerca um pequeno jardim elevado a um metro do passeio onde circulamos. Do nada oiço uma voz rouca e fina. ”Dá-me um cigarro.”. É de uma mulher magra, escanzelada, sem expressão, com os braços cruzados sobre o peito como se ainda tivesse colocada a camisa de forças, completamente esquecida do seu corpo. Parece tilintar de frio, sem ter frio. Usa um casaco beje, saia de flanela, collants e chinelos de quarto. João Gaivas, nem sequer respondeu, continuando o seu caminho. Imagino que um cigarro, aqui neste local, é um bem precioso.

A mesma senhora dirigiu a mesma pergunta a mim. Respondi “Bom dia.” Que a Senhora devolveu espantada e depois referi “Não tenho tabaco, não fumo.”. E a senhora continuou ainda espantada a olhar para o homem que lhe disse bom dia.

Virando novamente à direita avista-se já a esta hora a fila para a Metadona. Numa porta lateral do bloco HD que é servida por uma rampa em alumínio. O Gaivas é o dono da “fila”, não porque irá passar à frente dos seus companheiros, mas sim porque todos o cumprimentam e se metem com ele com tom jocoso. Parece-me que tem poder de encaixe e resposta para todos, mas imagino como deve estar cansado de não ser realmente um líder, de não ser o João, o sr. João, ser o Gaivas… o Gaivas. Neste instante subi ao gabinete, permanecendo a dúvida: “Será que o João irá subir ou não?”.

Passavam já vinte minutos das nove da manhã, o João devia ter subido às 9h00. A Dona Carla, uma senhora magra e deprimida, disse-me que o João iria subir já, estava a terminar o cigarro. “Depois da metadona, vai sempre fumar. Estou farta de lhe dizer para não fumar antes e para chegar a horas, mas tem sempre outras prioridades.” Ao mesmo tempo pensei… “caramba… um tipo de trinta anos, ainda tem de ser chamado a atenção para chegar a horas e não fumar?!”.

Finalmente o João Gaivas subiu as escadas e entrou no Ginásio. Penso que o Ginásio terá sido outrora uma enfermaria de Saúde mental. O tecto é alto, as paredes são bejes até à altura da janela depois brancos até às lâmpadas fluorescentes encastradas numa armação de vidro fosco. As janelas são enormes, de madeira, seguidas de grades de ferro mal pintadas de branco. As janelas dão para o nascer do sol e para um abandonado campo de futebol, onde agora se passeiam Melros que bicam a Terra para se alimentarem de vermes. À Direita desta porta, vê-se o Gabinete dos enfermeiros, separado por um Vidro com orifício para a passagem dos medicamentos e à altura da boca, para os enfermeiros antigamente poderem ouvir o número do paciente e passarem a dose de medicamentos prescrita pelos Psiquiatras. À esquerda uma porta que dá acesso a uma casa de banho, tão pequena como o lavatório, preservando ainda o autoclismo dentro da parede, com a corda para o accionar vinda de uma roldana e depois seguindo para o interior da parede. Na parede à esquerda uns espaldares, três, encostadas à mesma parede, Bolas de Bobath vermelhas, pareciam ser a única fonte de cor deste Ginásio. O chão é frio, revestido por uma tijoleira castanha.

Três marquesas antigas, com os pés já enferrujados, com alguns buracos na pele preta deixando a esponja à superfície. Pareciam mesmo dali, agarradas ao chão, sem que fosse possível alterar a sua altura, rígidas, frias.

As suas pegadas, de pés arrastados ficavam para trás de si, a sua face tinha gotículas de suor, tinha a roupa húmida o que sublinhava um odor desconfortável para mim. Esforcei-me para não demonstrar o meu esforço e mantive a mesma expressão, postura e disponibilidade. Cumprimentámo-nos, fomos apresentados e foi-lhe referido que eu iria trabalhar com o João nas próximas semanas. Ele deu o seu consentimento. Convidei-o a sentar a fim de iniciar a entrevista. Solicitei o nome, depois a idade… e a partir daí… O João pegou na conversa. Com o seu discurso atabalhoado, articulação difícil de compreender e uma velocidade atroz, fez-me lembrar os conselhos “Cuidado, ele é verborreico, não se irá calar.”. De facto… foi difícil manter uma escuta activa e pegar na entrevista…: “(…) tenho trinta anos, trata-me por Gaivas! Eu sou Gaivas não gosto que me chamem João sempre fui Gaivas que é o meu último nome e todos me tratam por Gaivas, Olha eu sou Seropositivo desde os treze anos, não foi por causa da droga foi uma namorada que eu tive coisas que acontecem, depois é que me meti na droga. Olha para estas marcas…” levantando o braço esquerdo e revelando cicatrizes na pele de injecções mal executadas ou doses que destruíram os vasos sanguíneos, parecem queimaduras de ponta de cigarros. Tinha de facto imensas ao longo do corpo e parecia mostrá-las com orgulho, como o soldado regressado que exibe as suas cicatrizes como prova de sobrevivência. De facto, pareceu-me que estas pessoas, de uma maneira geral, têm orgulho na capacidade que tiveram de deixar de consumir Substâncias Psico-Activas. Mas enquanto pensava nisto e olhava para as cicatrizes que me iam apresentando a conversa já tinha tomado outro rumo: “Que a minha mãe morreu quando tinha seis anos e o meu pai deixou-me. Agora moro ali no Lumiar num quarto. Dói-me muito o joelho tenho muitas dores no corpo também. Tenho melhorado muito, esforço-me muito porque eu não quero andar de muletas desde o acidente melhorei muito porque fui atropelado…”

Estava inundado de informação. Não havia expressão não-verbal, o contacto visual era pobre, queria agarrar-me com atenção àquela conversa, à inundação de informação e sobretudo não quereria voltar a perguntar coisas que o João já teria dito. Pareceu-me por momentos impossível. Compreendia que o João, estava a tentar atender àquilo que julgava que eu pretendia saber, mas de uma forma tão desadequada que tive de intervir. Esperem que os seus pulmões se esmiuçassem sem ar… e questionei:

- João e o que gostava de fazer? Quais são os seus projectos?”. Silêncio.

- “Projectos?”

-Sim, projectos. O que gostaria de ter ou fazer.

- Ah… (silêncio). – Não sei se tentou sequer pensar no assunto, talvez lhe causasse realmente dificuldades.

- Então? Não gostava de trabalhar?

- Não sei fazer nada. Não tenho nenhum projecto. Talvez um sítio para morar.

- Ah! Vê! Sempre tem um projecto. – pensando que tinha segurado a entrevista, o que de alguma forma aconteceu. Mas depressa… se voltou ao ritmo inicial…

- “Eu moro num quarto, na casa do meu irmão e da companheira dele pois, porque não são casados. Ela não gosta de mim, diz que sou drogado e gatuno. Mas devia ter a boca fechada, porque agora o filhinho dela também já anda na má vida. Não saio sequer do quarto, para não os ver saio mais cedo para ir ao café e depois quando chego faço uma sandes e subo para o quarto. Eu tive preso, mas não sou malandro. Há muitos que roubam e não dizem nada isto pode acontecer a qualquer um.”

Aqui compreendi e ao longo das sessões que foram decorrendo, que o João Gaivas tem um Locus de controle Externo, isto é, a sua vida é pautada por acasos e por culpa dos outros e não pelos seus comportamentos. Aqui detectei um dos problemas que poderiam afectar o programa terapeutico. Fazer com que o João modifica-se algumas crenças e comportamentos, com vista a atingir os objectivos. E demonstrar que esta mudança poderá partir dele, será uma tarefa árdua. Por outro lado, como em discussão com colegas, para muitas destas pessoas, depois da Droga não há mais nada. Já não há família, não há trabalho, não há casa, não há amigos, não há actividades de lazer, não há cuidados com o corpo, com a saúde, não há vida. Desta perspectiva psico-dinâmica é fácil compreender porque é que a Depressão e a ansiedade são perturbações prevalentes. Por outro lado temos a perspectiva neurológica e fisiológica que demonstram desajustes na produção de Serotonina, que são comuns a estes estados psicopatológicos e que podem ser alterados pelo consumo de substâncias psico-activas.

Ao exame objectivo, analisei a postura sem as duas canadianas. Parecia que João tinha acabado de consumir. Cervical em flexão, tronco flectido, com os ombros em rotação interna, braços pendentes com cotovelos em ligeira flexão, lordose lombar acentuada, bacia em retroversão, ancas ligeiramente flectidas assim como os Joelhos e base de sustentação alargada. Solicitei movimentos activos, verifiquei que o equilíbrio era precário.

Perguntei se os joelhos estavam esticados, João respondeu “Estão sim, senhor.”. Suspeitei de alterações proprioceptivas e as dificuldades no equilíbrio estático e dinâmico era evidente.

Para testar a sensibilidade, as amplitudes articulares e os movimentos activos solicitei que assumisse o decúbito dorsal, na velha marquesa cuja altura não pode ser regulada. Com alguma dificuldade, subiu para a marquesa. Subiu as calças de fato de treino encharcadas… ao mesmo tempo que colocava as luvas descartáveis. Pude observar que a pele estava profundamente desidratada. O cheiro a urina intensificou-se com a minha aproximação. Tentei não alterar a minha expressão, nem a minha postura… sinceramente penso que o João Gaivas já não é muito sensível a esta forma de comunicação, contudo faz parte da minha competência ética e profissional. Pensei… “Como este corpo está esquecido…”, completamente abandonado, esquecido, marcado.

Curiosamente, ao longo deste período de Educação Clínica no Centro, apesar destes corpos não terem expressão, serem frios e rígidos, estas pessoas parecem ultra-sensíveis à nossa comunicação verbal e não-verbal, conseguindo identificar alguns sinais subtis. Ou será que o fazem, de forma a tentarem obter mais informações, para assim conseguirem, quando necessário, manipular aqueles que estão à sua frente? Não sei responder, qual a hipótese mais acertada, mas é certo que importa manter uma estabilidade comportamental e de raciocínio constante, sem que isso tenha influência sobre as relações terapêuticas que vão sendo criadas. Este exercício, verifica-se importante para adequar a nossa intervenção, mantendo aparentemente as situações intactas, estáveis e sem rupturas. Dando resposta às obsessões e compulsões comuns a estas patologias.

Numa primeira ocasião, preferi não fazer qualquer alusão à falta de higiene. Seria fim de todo o processo, sem que ele sequer se tivesse iniciado. Senti que iria dar motivos ao João Gaivas, para este nunca mais lá aparecer. Quando é que poderei trabalhar este item? Não sei… é algo que terá de esperar, será necessário desenvolver a relação terapêutica.

Não se verificaram alterações nos reflexos osteo-tendinosos ou cutâneos. Os movimentos activos estavam alterados, mas a função analítica dos músculos que exercem função na anca, joelho, tíbio-társica e dedos estavam preservados. Verificaram-se ligeiras alterações proprioceptivas, sobretudo em termos táctilo-quinestésicos. A coordenação motora estava também um pouco alterada. Portanto, presumo que devido ao consumo de Substâncias Psico-Activas, terá havido uma desintegração ligeira do córtex pré-motor e motor, bem como, alterações ao nível do córtex parietal na área primária motora, que recebe os estímulos proprioceptivos. A somar a esta eventualidade, poderá também estar associado a este quadro um lesão cerebral mínima passível de alterar o comportamento e a cognição desta pessoa. Ou já haveria anteriormente esta lesão cerebral mínima? Estas alterações não são detectáveis através de meios complementares de diagnóstico, apenas os testes clínicos lhes podem ser sensíveis… mas no nosso mundo o que não se vê… dificilmente existe.

Pareceu-me contudo um sujeito que poderá apresentar progressos sobretudo ao nível do equilíbrio e condicionamento muscular, bem como em termos psico-sociais. Perguntei ao João Gaivas o que pensava que a Fisioterapia poderia fazer/ajudar “andar sem as muletas.” Respondeu depois de pensar um pouco. Pareceu-me um objectivo razoável, dependente da aplicação de uma bateria de teste para o equilíbrio, poderíamos encontrar ali um rumo comum.

João olhou para o relógio, que por baixo conserva suor e poeiras que se transformaram numa massa cinzenta, e referiu ter imensa necessidade de sair, pois tinha de resolver uns assuntos aqui e ali, não se sabe bem onde. Faltavam quinze minutos para terminar. Combinei novo encontro e depois ouvi algo que me convenceu que tinha ganho o João, no seu ritmo de sempre enquanto se calçava “sabes Pedro gostei muito eu agora vou vir sempre à Fisioterapia porque posso melhorar e eu estou aqui para trabalhar e para melhorar não sou como os outros que andam aí a brincar de maneiras que vou vir para ver se largo as muletas. Gostei muito gosto quando as pessoas não falam para as outras a pensar que as outras são burras que eu não sou nenhum burro lá porque andem na Droga não sou burro nem estúpido.” Respondi com um sorriso de agradecimento “óptimo João, então começaremos a trabalhar na próxima quinta.”.

Quinta-feira… João Gaivas… não apareceu. Senti-me um pouco traído… até porque sei que ele esteve no Centro das Taipas para recolher a Metadona. O que se terá passado? Pareceu-me tão sincero. Terá dito aquilo apenas para me agradar? E como é que poderei ajudar uma pessoa que não está envolvida no seu processo de reabilitação. Não são duas horas semanais que vão mudar a sua condição!

Foi precisamente isto que lhe transmiti, de forma séria e formal na Segunda-feira seguinte. Já não me lembro da desculpa que João inventou, mas refere ser uma pessoa extremamente ocupada. Tentei permanecer disponível, mas ao mesmo tempo mostrar o meu desapontamento e responsabilizá-lo pelos seus comportamentos. A sua reposta não tardou “Não não eu vou vir porque isto me faz bem e que quero largar as muletas e gosto muito de trabalhar não sou como certos malandros que andam aí que não fazem nada andam só a fingir eu quero mesmo melhorar até já perdi peso. Eu era muito mais gordo sabias Pedro? Opáááá nem me levantava mas esforcei-me e agora já consigo andar e faço exercícios em casa e tudo.”

Pensei para mim mesmo “sim, sim, sim… me engana que eu gosto.”, sendo que não é esta a postura que ajuda. Decidi demonstrar que realmente acredito no João, vou fazer parte da equipa dele, vou ter de acreditar nele, ser o primeiro a defendê-lo e o primeiro a exigir o cumprimento das actividades. “Ok João, eu acredito, todos nós temos os nossos compromissos, mas a Fisioterapia é também um compromisso seu. Eu estarei aqui sempre para recebê-lo e ajudá-lo, mas tem de estar presente caso contrário será impossível. E eu sei que o João vai passar a vir todos os dias e a trabalhar o máximo.” João não se ficou, respondeu de pronto. “Sim, eu venho. Eu disse-te que tinha gostado e gostei mesmo mas não pude no outro dia. Agora vou trabalhar a sério porque vou mesmo melhorar.” Surpreendeu-me ainda se lembrar da conversa mantida na sessão anterior. Talvez tivesse mesmo gostado, talvez fosse mesmo tudo verdade, apesar de completamente confuso e estapafúrdio, mas isso é a sua história. Ou então estaria a tentar manipular-me. Por detrás daquele aspecto desmazelado, aéreo, desorganizado, há pormenores que parecem captar a sua melhor atenção e memória. Curiosamente são sempre aspectos manipuláveis ou que servem para justificar uma alteração, ou um afrontamento. “Se perder a minha concentração e coerência irei perder o João”, pensei.

A sessão correu bem, mensurei todas as actividades através do tempo e das repetições. Foi algo que pareceu motivar o João, não por os exercícios terapêuticos serem importantes, mas porque achou piada à tentativa de superação dos seus recordes pessoais. Fiquei satisfeito, pela simplicidade da tarefa, pois limitar-me-ia a transmitir a minha avaliação e pelo entusiasmo e envolvimento do João em cada exercício. Pareceu-me fazer sentido. Estas pessoas querem e vivem o imediato, numa impulsividade constante, numa síntese de emoções, numa pressa, numa ansiedade… “ver os resultados imediatos, saber porque é que acontece assim” é uma ferramenta elementar para a intervenção. João saiu satisfeito, não cansado, nessa não acreditei… ao mínimo sinal de cansaço João não resiste e pede para parar… mas o que o João quer é fôlego para conversar. Assim que sente que não irá conseguir completar os longos parágrafos pára. Pedir concentração a uma pessoa de trinta anos é estranho, mas tive de o exigir.

Ao longo das sessões, apesar de João me tratar por tu, parecia esperar de mim sempre uma figura de autoridade e um elemento avaliação. Penso que sentir que alguém estava “de olho nele” preocupado e atento o faz sentir bem, importante. No fundo a sua vida tem um vazio de autoridade e limites desvanecidos senão inexistentes. Esta exigência de outrem, ajuda-o na sua organização pessoal, é um agente que julgo ser, por si só, terapêutico. Evidente que se pretende transferir essa responsabilidade para o João, mas tudo a seu tempo.

As actividades calmas e de relaxamento é que constituíam uma dificuldade considerável para o João. Permanecer de olhos fechados, sem se mexer, entregue ao seu corpo rígido e fixo é que é difícil, extremamente difícil. O relaxamento é tudo aquilo que contraria o seu mal-estar, mas surge como uma actividade que exulta toda a confusão corporal e de identidade. Ouvir a própria respiração, o seu coração, abandonar o seu tónus muscular rígido pode ser o caminho mais curto para a confrontação com o seu corpo sofrido, com a sua mente sofrida.

Lembro-me de outro aspecto, que achei curioso e que penso ter respondido bem. Tem de novo a ver com a tendência manipulativa, obsessiva e compulsiva do João. Eram ainda oito horas e cinquenta minutos, faltavam dez minutos para o inicio da sessão que normalmente iniciava com atraso. Tinha acabado de vestir a farda. Entretanto algumas moedas caíram no chão de mármore e espalharam-se pelo chão. Recolhi-as uma a uma e coloquei-as no bolso, pois ainda pensava ter tempo de as colocar na carteira, que se encontrava dentro do cacifo. Mas ouvi o som de canadianas, passos arrastados e rápidos, decididos e sem hesitações. Era sem dúvida o João. Dirigi-me de imediato para o Ginásio para recebê-lo e antes de o fazer coloquei as moedas na secretária da enfermaria, ao mesmo tempo que João abria a porta e mirava o ginásio, gostava sempre de saber quem já tinha chegado, onde cada pessoa estava e se já estava a trabalhar. Algo que parecia registar num livro de ponto só seu. É claro que viu as moedas, eu sabia-o. Mas movimentou-se como se nada se tivesse passado de anormal. Cumprimentou-me, sentou-se na cadeira para se descalçar e despir o casaco e: “Oh Pedro, não me arranjas um euro?”. Aí está! A pergunta que naturalmente esperava e já tinha ensaiado a resposta firme, convicta e assertiva. “Não João, não posso arranjar, respondi.”

Mas tens aí dinheiro.” retorquiu com naturalidade. E logo devolvi uma resposta pronta. “Tenho, mas as moedas estão trocadas para o meu café e para o metro.” Ao longo da sessão a conversa das moedas surgiu algumas vezes e mantive esta postura. Foi importante ter pensado em fracções de segundo uma resposta evidente, clara e concisa que não alimentasse mais tentativas do João. Se eventualmente cede-se uma moeda que fosse, tenho a certeza que o João passaria a manipular-me, com o intuito de reunir mais dinheiro. Defendi-me com sucesso penso eu e isso fez-me sentir mais seguro.

Ao fim de quatro semanas, melhorou a força dos membros inferiores, passou a deslocar-se numa só canadiana. Deu-me todas as razões para confiar nele, estava de facto envolvido e a trabalhar de forma a atingir os objectivos.
Nós somos um corpo (Campello & Range, 2006) e parece-me, humildemente, que sem ele nos perdemos no caos que conseguimos virtualmente organizar com recurso a um corpo referência, que nos situa e agarra neste Universo que não conseguimos explicar. Ou conseguimos?
 Os Jacarandás, lá continuam. Perguntem-lhes.

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